Tecnologia e a fragmentação da atenção
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Publicado 18/10/2017 - 08h09

Tecnologia e a fragmentação da atenção

Existe muita discussão acerca das transformações radicais que a tecnologia trouxe para a vida das pessoas nas últimas décadas. Esse já é um tema bastante explorado, mas mesmo assim ainda é possível surpresa quando nos deparamos com alguma nova consequência dessas transformações. Por exemplo, outro dia recebi num grupo de mensagens instantâneas um vídeo que mostrava um jovem tentando usar um telefone de disco. O jovem colocava os dedos através dos orifícios do disco do telefone, apertando com força os números logo abaixo. Evidentemente que não conseguia fazer a ligação, porque naquele tipo de dispositivo é necessário “discar”, ou seja, girar o disco até que o movimento do dedo seja bloqueado por um anteparo. Penso que para a geração do smartphone, em que o celular é acionado por gestos intuitivos, “discar” num telefone fixo pode ser considerado tão primitivo quanto lançar sinais de fumaça.
Essa referência inicial ao impacto da evolução tecnológica serve de preâmbulo para a discussão central da coluna de hoje: a mudança na forma de estudar, pesquisar e aprender por conta da alta disponibilidade de informações na internet. Assim, gostaria de trazer um registro de uma consequência da evolução tecnológica um pouco mais relacionada com a minha área de atuação profissional, que é o estudo constante e a pesquisa científica.
Para isso, recorro à lembrança das minhas primeiras viagens aos Estados Unidos na década de 80, quando tive oportunidade de conhecer universidades da costa leste à costa oeste. Em todas as cidades que parávamos, dias inteiros eram reservados à biblioteca da universidade local, bem como às livrarias. Era a oportunidade que se tinha para obter informações com presteza, dado que naquele tempo as publicações chegavam ao Brasil depois de muitos meses.
Para entender a motivação desta busca pela atualização constante, é preciso reconhecer que a manutenção de um cientista “na crista da onda” da pesquisa requer o acompanhamento tempestivo da expansão das fronteiras científica e tecnológica.
Mesmo em férias, nada de Disney ou Universal. Buscava-se na passagem pelas bibliotecas o momento para correr atrás de algum prejuízo.
Antes da internet e dos mecanismos de busca, além de recorrer às viagens para visitar bibliotecas, o pesquisador tinha como alternativa aguardar (im)pacientemente a chegada das revistas científicas no Brasil, que comumente vinham por navio, levando meses para chegar. A outra opção era o pesquisador mandar pelo correio um “cartãozinho” de pedido de “preprint” para os autores do “paper internacional” de seu interesse. Esperavam-se, também, meses pelo envio do material. Muitas vezes, quando o material chegava, o solicitante descobria que tinha avaliado erroneamente a relevância daquele “paper” para sua pesquisa, o que podia significar ainda mais atraso. Por outro lado, quando o paper era pertinente à pesquisa, ou quase, a tendência era devorar o texto nos seus mínimos detalhes, porque havia tempo para isso. Na leitura, o texto era quase que reinventado, tirando novas conclusões e deglutindo cada frase.
Estas dificuldades explicam porque a “muamba” do cientista que visitava um país estrangeiro era uma mala cheia de livros ou de cópias de papers.
Muita coisa era também mandada por navio, porque não cabia na mala. Acho que livros e papelada estão entres as coisas mais pesadas para se carregar numa viagem. Então, o roteiro sempre tinha uma etapa final, antes do retorno ao país de origem, que era passar nos correios para enviar o material que não coubera na mala.
Outra coisa daquele tempo é que não existia editor de texto. As pessoas usavam uma coisa chamada “máquina de escrever”, que não permitia apagar o que já tinha sido escrito. Todo o trabalho de edição era feito através de corte e cola, literalmente. Os vários trechos de texto eram recortados e “enxertados” no meio de outros, formando uma verdadeira tripa "frankestein" de retalhos. Pensar que muitos clássicos primorosos foram escritos assim? Se por um lado era mais difícil e trabalhoso, por outro exigia mais reflexão e planejamento do autor do paper, da tese ou da obra literária. A terrível aparência da tripa de retalhos fazia com que o autor se concentrasse na qualidade do texto, o que era muito positivo para o leitor.
A alta disponibilidade de papers, teses, revistas e livros vivenciada nos dias de hoje permite que qualquer um tenha acesso à informação de qualidade a qualquer tempo, em qualquer lugar, sem que seja necessário empreender uma viagem para visitar uma biblioteca no exterior. Também não é mais totalmente necessário frequentar livrarias, um negócio que pode estar em extinção. Até a Cody's Books, lendária livraria de Berkeley, teve que fechar suas portas na década passada por conta da incapacidade de concorrer com fornecedores on-line.
Esta ampla disponibilidade de fontes bibliográficas dos dias de hoje significa que uma pessoa bem formada tem condições de alavancar o seu conhecimento mais rapidamente. Ao mesmo tempo, significa que essa mesma pessoa pode dispersar sua atenção com intermináveis buscas de fontes, as quais não deixam tempo para estudar a fundo os materiais já encontrados. É como o que pode ocorrer a quem está lendo este texto neste mesmo momento: “será que vale a pena continuar lendo esta coluna? Ou será que eu deveria voltar para o Google e dar uma busca por uma coisa melhor para ler?”.
O leitor fica dividido entre aprofundar a leitura ou dar uma nova busca, o que muitas vezes significa perder alguma informação importante e permanecer, inadvertidamente, na superfície do conhecimento, sem nunca aprofundá-lo.
É como se uma senso de urgência incontrolável tomasse conta do leitor, deixando-o paralisado em meio ao dilema de continuar lendo algo que talvez não seja exatamente o que ele precisa para aquele momento da pesquisa, ou perder tempo indefinidamente procurando um texto exatamente relacionado com seus interesses, um escrito que talvez nem exista. A abundância faz com que o leitor se veja lançado numa espiral frenética de ansiedade.
Mas será que esta situação de falta de aprofundamento nos textos é culpa da tecnologia em si, ou da forma como ela vem sendo usada?
Para aguçar esta reflexão, recorro a Nicholas Carr e seu festejado texto “The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains”, de 2011. Nos trechos iniciais do livro, Carr confronta a visão de David Sarnoff, o magnata da mídia que foi pioneiro do rádio na RCA, na década de 50, com a de Marshal Macluhan, autor do “Understanding Media: extensions of man”, grande “hit” da década de 60.
Segundo registros, Sarnoff teria dito “nós estamos muito propensos a fazer dos recursos tecnológicos o bode expiatório dos pecados daqueles que os utilizam. Os produtos da ciência e da tecnologia não são, em si próprios, bons ou maus; é a forma como são usados que determina seu valor”.
Em oposição, Macluhan expressava que: “A nossa resposta convencional para justificar o papel da mídia é dizer que o que conta é como ela é usada. Esta resposta é a instância entorpecida de um idiota tecnológico. O conteúdo oferecido por uma dada mídia é a carne suculenta trazida por um ladrão para distrair o cão de guarda da mente”.
Em suma, as duas visões são o pano de fundo para a percepção de como a forma de aprender e estudar vem se transformando. Talvez eu concorde com a visão de que o menor aprofundamento nos conteúdos não é apenas consequência da forma como a tecnologia é utilizada, mas, isto sim, do quanto as conveniências de seu uso trazem intrinsecamente um estímulo para que a atenção humana se fragmente, criando novas formas de interação com os conteúdos.
Esta fragmentação não é necessariamente ruim. Traçando uma mal acabada analogia com o caso do telefone de disco, não se deve criticar o jovem por não saber utilizá-lo, mesmo porque utiliza com maestria o smartphone, assim como consegue aprender de forma fragmentada, diferentemente das gerações que lhe precederam.