O ENEM: Um Funil Gigante
Publicidade
Publicado 17/10/2017 - 09h32

O ENEM: Um Funil Gigante

Esta época do ano é crítica para milhões de estudantes em todo o Brasil. A temporada de provas para ingresso no ensino superior começa com o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), organizado pelo Ministério da Educação. O ENEM foi originalmente introduzido para avaliar a qualidade do ensino médio no país, mas evoluiu para uma prova de conteúdo usada atualmente para outras finalidades. Entre elas, incluem-se seu uso como prova para admissão nas principais universidades federais e em outras instituições públicas, como fator de forte influência na distribuição de auxílio financeiro para estudantes e como requisito para bolsas (como no programa Ciência sem Fronteiras, por exemplo).
Há atualmente em torno de 8 milhões de estudantes inscritos para o exame, que competem para aproximadamente 250 mil vagas no sistema federal de ensino superior, o chamado Sistema de Seleção Unificada (SISU). O exame é aplicado simultaneamente em todo o país, no antigo formato de cópias impressas que requerem respostas escritas à mão, o que impõe muitos desafios logísticos e representa um custo gigantesco. Além disso, o conceito do exame em si mostrou-se prejudicial ao ensino médio, conforme discutiu brilhantemente Simon Schwartzman em um post de blog recente (ver http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=5289&lang=en-us).
Em primeiro lugar, a crescente dominância desse exame – que requer conhecimentos bastante profundos de matemática, física, química, biologia, português, inglês, história, geografia e redação – molda efetivamente o currículo do ensino médio com claras desvantagens para aqueles que não participarão do SISU e para aqueles que não pretendem candidatar-se a vaga em nenhuma universidade. Conforme apontado por Luiz Carlos Freitas em seu blog (ver http://avaliacaoeducacional.com/2015/10/19/california-suspende-seu-enem-obrigatorio-2/), sabe-se que políticas baseadas em provas “decisivas” se tornaram um sério mal para o processo de aprendizado dos estudantes. Na verdade, vale mencionar que a Califórnia acabou de banir seu exame de saída do ensino médio. O portal de notícias SFGate informou (ver http://www.sfgate.com/bayarea/article/With-Exit-Exam-scrapped-search-for-now-qualified-6567342.php): “Alguns estudos mostraram que muitos alunos da Califórnia não aprovados no exame de saída tiveram desempenho tão bom quanto o dos aprovados em outros indicadores acadêmicos, tais como provas anuais padronizadas e trabalho de classe, sinalizando que outros fatores além da habilidade acadêmica poderiam estar em jogo”.
No Brasil, deveríamos caminhar no sentido desenvolver um currículo para o ensino médio que possa acomodar certo grau de diversidade, como foi feito em muitos outros países, e não um currículo único orientado para um exame que não é relevante para todos. Um núcleo comum e geral de ensino deveria ser a base de todos os cursos, seguido por caminhos eletivos que ofereçam tanto um conhecimento mais específico e profundo para aqueles que desejem dar prosseguimento aos estudos acadêmicos ou seguir uma carreira de nível superior mais especializada, como uma preparação técnica para os que entrarão no mercado de trabalho ao concluir o ensino médio. Conforme ressaltou Schwarztman, “o ensino médio deve ser um período de formação e qualificação, geral e profissional, e não um longo curso preparatório para uma universidade que muito poucos vão frequentar”. Portanto, o ENEM precisaria ser modificado, com foco na avaliação do nível secundário de instrução, levando-se em consideração a inevitável diversidade de estudantes e objetivos existente dentro do sistema. O ENEM deveria ser uma prova de conhecimentos gerais focada em comunicação e raciocínio matemático, com diferentes avaliações para os diferentes caminhos a serem percorridos por diferentes estudantes, incluindo um sistema de certificação para as carreiras técnicas e profissionais.
Do ponto de vista da logística, está claro que o modelo antigo de provas impressas aplicadas em todo o País é insensato. O exame deveria ser oferecido em diferentes momentos e localidades, por meio de modernos dispositivos e tecnologias de comunicação e informação, como os utilizados na aplicação de provas em outros lugares do mundo.
Uma das principais justificativas para o “caráter de ingresso unificado” do ENEM era que ele tornaria o acesso ao ensino superior mais democrático, pois permitiria que estudantes de qualquer cidade se candidatassem a uma vaga em qualquer universidade federal do país. Contudo, além de faltar apoio financeiro para que os jovens se mudem para outros lugares para estudar, a aplicação de uma prova densa cria uma situação ainda mais elitista. As instituições de ensino superior localizadas em regiões menos desenvolvidas do país têm alguns de seus cursos preenchidos por estudantes originários da área mais rica, que distorcem o conjunto local de candidatos. Isso pressiona as notas de corte para cima, e as universidades perdem a possibilidade de selecionar estudantes mais adequados aos objetivos profissionais e pedagógicos da instituição. Mesmo com a recente política de reserva de ao menos 50% das vagas para cotas de estudantes de certos grupos raciais ou de nível socioeconômico baixo, o funil parece tornar-se cada vez mais competitivo, ampliando ainda mais a desigualdade no acesso ao ensino superior.
De fato, estudos anteriores demonstram que a maioria das vagas nas universidades federais do Brasil continuará a ser ocupada por estudantes provenientes de famílias com maior nível de instrução, que estudaram em boas escolas particulares ou nas poucas escolas públicas de excelência existentes no País. Evidentemente, isso tem correlação direta com o nível socioeconômico da família, o que leva a uma assimetria no processo de seleção e à perpetuação das desigualdades na sociedade brasileira. Este é outro exemplo dos muitos desafios que o Brasil tem de encarar, especialmente na educação, a fim de continuar a evoluir na direção de um país mais justo e democrático.
Adaptado de The ENEM: A Giant Bottleneck for Brazil (https://www.insidehighered.com/blogs/world-view/enem-giant-bottleneck-brazil), 31/05/2015.