A questão da Percepção da Altura de Sons Complexos: Um problema ainda aberto
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Publicado 29/11/2017 - 09h45

A questão da Percepção da Altura de Sons Complexos: Um problema ainda aberto

De acordo com a convenção de 1960 da American National Standards Institute, a altura (pitch) de um som é definida como "o atributo da sensação auditiva em termos da qual os sons podem ser ordenados em uma escala de baixo até alto". Como todas as sensações, a altura de um som é uma quantidade subjetiva, mas que de alguma maneira está fortemente relacionada com as características físicas do estímulo. Para tons puros, a altura é ligada principalmente às frequências das componentes do som, embora possa depender também do nível de pressão do som. Para sons complexos, à altura somam-se a dependência do timbre do som e de sua duração. Deste modo, estudos da percepção da altura de sons complexos têm sido um dos campos mais interessantes do estudo da psicoacústica nos últimos anos.
A investigação científica da altura tem uma longa história, pois sabe-se que Pitágoras já se interessara pelo assunto. Outros grandes nomes, tais como von Helmholtz (com seu célebre livro "On the sensations of tone as a physiological basis for the theory of music", 1862), Ohm (postulando a conhecida lei acústica de Ohm) e Békésy (prêmio Nobel medicina 1961). As primeiras teorias de percepção consideraram que a altura era percebida no nível periférico do sistema auditivo, mas teorias posteriores indicaram que intenso processamento auditivo central era necessário para perceber a altura de um som. Entretanto, evidências experimentais mais atuais indicam que o processamento ocorre antes do córtex auditivo primário. Sendo assim, os modelos mais recentes integram o processamento periférico e o central, mas ainda há muitos aspectos da percepção da altura que permanecem mal explicados.
De fato, o problema da percepção da altura de sons complexos é um tema que vem intrigando gerações de pesquisadores das mais diversas áreas. Do ponto de vista histórico, um experimento fundamental ocorreu em 1843 (chamado sirene de Seebeck) que mostrou a existência de uma altura resíduo (também conhecida como “fantasma”), mesmo quando o som estímulo não possui harmônicos na frequência que seria a frequência fundamental do som completo. Outro experimento crucial no estudo da percepção da altura foi realizado por Schouten e colaboradores no final dos anos 1930, na qual os autores eliminavam o harmônico fundamental de um som complexo, mas a altura do som permanecia inalterada na frequência do harmônico ausente. Posteriormente, eles adicionaram um tom puro com altura próxima à do som complexo, mas não idêntica, para verificar se os indivíduos testados ouviam algum tipo de batimento, mas nenhum batimento foi ouvido por nenhum dos indivíduos testados. Tal experimento parecia dar suporte à teoria da periodicidade da altura, pois levando-se em conta que o ouvido produz um produto de distorção, como proposto por von Helmholtz, algum batimento teria que ser sentido. Na realidade, nosso sistema auditivo continua percebendo a mesma altura mesmo que diversos harmônicos iniciais sejam removidos. É claro que o timbre do som muda significativamente, mas a altura percebida continua a mesma. Esse fenômeno é conhecido como o problema do harmônico ausente, altura virtual, ou percepção resíduo.
Nos últimos anos, entretanto, avanços significativos têm ocorrido, provavelmente devido ao desenvolvimento de equipamentos eletrônicos, computadores e novos modelos físicos e matemáticos. Além disso, pesquisas interdisciplinares têm sido cada vez mais estimuladas, o que provoca uma rica troca de informação entre as mais diversas áreas que investigam o funcionamento do nosso organismo. Algumas novas teorias, desenvolvidas a partir de argumentos universais do comportamento de sistemas dinâmicos, parecem ser bastante promissoras para explicar não só a presença do resíduo, mas também para explicar o deslocamento deste quando as componentes do som também são deslocadas.
Mas tudo isso pode vir a ser importante, ou é uma mera curiosidade científica? Graças ao resíduo podemos perceber a música que é produzida por um velho e pequeno rádio de pilhas, que tenha uma resposta quase imperceptível em baixas frequências. Ou ainda, é possível que um órgão possa produzir uma bela música em uma igreja. De alguma maneira, a altura resíduo parece ter um papel fundamental na percepção musical e na inteligibilidade da fala. O resíduo pode ser a base do baixo fundamental de Rameau, por exemplo, que junto com os seus análogos mais modernos, formam os elementos chave para a estruturação melódica e harmônica de sons musicais. Desta maneira, a compreensão da percepção da altura fantasma poderia contribuir para a construção de uma teoria da música com sustentação objetiva. Além disso, resta ainda entender a intrigante questão dos indivíduos com o talento do ouvido absoluto (perfect pitch), já que nos últimos anos têm aparecido uma série de novas pesquisas que indicam que é possível treinar indivíduos para ter essa habilidade, sem, contudo, descartar uma inerente predisposição genética.
No que se refere à compreensão da fala, já se sabe que aparelhos auditivos que fornecem informação precisa sobre as frequências fundamentais produzem melhores resultados em indivíduos com deficiência auditiva severa do que uma simples amplificação. A partir destes estudos pode-se entender melhor a resposta em frequências e distorção harmônica das próteses auditivas. Além de auxiliar pacientes com deficiência auditiva, compreender os mecanismos do reconhecimento da fala certamente tem uma importância fundamental na tecnologia moderna, para o desenvolvimento de sistemas computacionais que possam integrar informação auditiva e visual para reconhecer sem erros o discurso humano, com as mais diversas nuances na fala que diversas pessoas possam vir a ter.
Sendo assim, parece óbvio que uma melhor compreensão sobre os mecanismos básicos atuantes na percepção da altura irá permitir uma consequente evolução nas suas diversas aplicações na tecnologia, artes e medicina.