Saberes e Competências: José Cícero Martins Brandão
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Publicado 14/02/2018 - 07h37

Saberes e Competências: José Cícero Martins Brandão

Anteriormente, nesta coluna, tratei de uma questão que me parece muito importante para uma comunidade científica saudável: o respeito aos saberes e competências.
Para exemplificar esta visão, decidi fazer uma justa homenagem ao Sr. José Cícero Martins Brandão, pioneiro e reconhecido especialista na confecção de vidrarias científicas no país.
Autodidata, construiu uma base de conhecimentos científicos e tecnológicos sólida e única, demonstrando uma habilidade incomum. Conquistou o respeito de toda a comunidade científica, construindo uma larga história de criação, adaptação e reparo de peças para instrumentos e arranjos experimentais sofisticados.
José Cícero continua atuante, explorando os limites das técnicas de vidraria, desenvolvendo a síntese e a caracterização de materiais e suas aplicações mais avançadas, sempre com originalidade, com rigor metodológico e muita habilidade manual. As técnicas que hoje domina são resultado de anos de experimentos e ensaios que ainda continua realizando em seu próprio laboratório, nos Amarais, perto do CTI. José Cícero desenvolveu lasers a gás, dewars, destiladores, evaporadoras, janelas de brewster, criostatos para nitrogênio líquido e hélio líquido, janelas de quartzo, espelhos especiais, solda metal vidro, acessórios de quartzo para difusão e fabricação de circuitos integrados, entre tantos outros componentes e instrumentos sofisticadíssimos, sempre com soluções inovadoras para garantir melhor desempenho e maior durabilidade.
Sua contribuição tem se estendido não só à produção de peças de vidro como também ao ensino desta arte em diversas instituições científicas e universidades do país.
José Cícero nasceu em 15/10/1931 em Ribeirão Preto, SP, tendo iniciado seus estudos no Colégio dos Irmãos Maristas e no Colégio Progresso e se formado Técnico de Contabilidade pela Escola São Sebastião e como Professor Primário também na Escola São Sebastião.
Seu forte interesse pela ciência e tecnologia fez com que ele buscasse, entre 1955 e 1956, um curso de Técnico de Laboratório e de Técnico de Raios X na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, sendo que logo foi admitido para trabalhar no Laboratório de Análises Bioquímicas do Sangue, do Hospital das Clínicas daquela Faculdade, onde se tornou responsável pela Seção de Enzimas e Eletrólitos e, posteriormente, pela área de Radiologia.
Sua contribuição não foi menos importante como técnico plantonista e técnico de emergência da Equipe de Cirurgia Extra Corpórea e Cateterismo Cardíaco dos Drs. Rui Ferreira Santos e Dalmo Amorim, como responsável pelas dosagens de CO2, O2 e reserva alcalina no sangue.
A descoberta de seu talento com vidros ocorreu quando, nesta época, por pura curiosidade, consertou uma taça de vidro quebrada de sua mãe, utilizando um maçarico do laboratório. Sem qualquer formação específica na área, começou a fazer reparos nas vidrarias do laboratório, sendo cada vez mais solicitado para soldar e criar peças em vidro. Dividia seu tempo entre análises clínicas e o trabalho com vidro, demonstrando forte vocação e entusiasmo por este último.
Sua competência no trabalho com o vidro, fez com que ficasse conhecido entre os cientistas brasileiros que demandavam componentes especiais para suas pesquisas avançadas. Assim é que foi convidado para construir as partes de vidro de um laser desenvolvido na Universidade de São Paulo, campus de São Carlos, onde atuou por três anos aos fins de semana. Sua importante contribuição neste desenvolvimento traduziu-se no reconhecimento, em 1968, pelo Prof. Dr. Sérgio Mascarenhas, da Escola de Engenharia de São Carlos da USP, expresso em carta ao Prof. Dr. José Moura Gonçalves, Diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto1:
“Vimos agradecer a Vossa Excelência a colaboração que vem sendo prestada pelo funcionário dessa Faculdade, Sr. José Cícero Martins Brandão, ao Departamento de Física da Escola de Engenharia de São Carlos, através da confecção de aparelhos lasers a gás e instrução em técnicas de vidraria a nossos assistentes e bolsistas.”
Este reconhecimento foi estendido, no mesmo ano, pelo Prof. Dr. Hélio Lourenço de Oliveira, Catedrático do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ao corroborar as palavras do Prof. Mascarenhas como segue2:
“É grato comprovar-se que a oportunidade aberta nesta Faculdade ao desenvolvimento das aptidões inatas e do espírito de iniciativa de um de seus técnicos tenha vindo a propiciar um intercâmbio significativo entre duas instituições universitárias.”
O reconhecimento imediato por sua habilidade inata, paixão e capacidade como autodidata não permitiram que José Cícero se acomodasse. Permaneceu buscando maior aperfeiçoamento técnico. Não havendo escolas e laboratórios no Brasil onde pudesse se aprimorar, foi enviado ao exterior pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto para a realização de um programa de aperfeiçoamento em laboratório especializado nos Estados Unidos. C Cabe-nos enaltecer a capacidade das lideranças científicas da época de reconhecerem a competência de um profissional independentemente de seus títulos. Foi Prof. Dr. Ivan F. de Carvalho, do Departamento de Clínica Médica, em carta submetida à FAPESP em 5/11/1968, quem apontou a importância de enviar um técnico ao exterior para prosseguir com sua formação, fora dos cânones acadêmicos:
“Este aprimoramento é de máximo interesse não só para a manutenção e reparo da vidraria de aparelhagem científica como também para a execução de novos instrumentos que venham a ser necessários” 3.
O Prof. Dr. Milton Ferreira de Souza, do Departamento de Física da Escola de Engenharia de São Carlos, também expressou seu apoio ao aperfeiçoamento de Cícero destacando4:
“Aliada ao seu entusiasmo está sua capacidade técnica e o interesse em progredir. As qualidades que tivemos oportunidade de conhecer no Sr. Cícero fazem dele a pessoa ideal para estágio em uma instituição que lhe permita adquirir conhecimentos para dominar as seguintes técnicas: solda vidro- cerâmica e vidro-metal, trabalho em quartzo, polimento óptico.”
Assim é que em 1969 foi-lhe concedida pela FAPESP uma bolsa de estudos para se especializar em técnicas de vidro no Brookhaven National Laboratory, em Long Island, Estados Unidos. Foi nesta ocasião que se tornou membro da American Scientific Glassblowers Society, sob no. 707.
Já no ano seguinte, seus conhecimentos e grau de profissionalização despertaram o interesse do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp, à época dando seus primeiros passos no desenvolvimento de lasers. A pedido do Prof. Dr. Rogério CerqueiraLeite, José Cícero foi comissionado para trabalhar na Unicamp, sendo que em outubro de 1970 foi admitido pelo Instituto como Técnico Especializado em Componentes de Laser.
No mesmo ano ministrou o primeiro curso para vidreiros do Brasil, no Instituto de Física, sendo que em junho de 1973 publicou o Manual do Aprendiz de Vidreiro5.
A partir de julho de 1971 já chefiava a Seção de Vidraria do IFGW, Unicamp, que veio a ser o único lugar no Brasil onde se fabricavam garrafas térmicas de quartzo, também conhecidas como dewars.
De seu laboratório saíram janelas óticas de vidro pirex resistentes a altas temperaturas, filtros de placas porosas de vidro moído, eletrodos para lasers e vários outros instrumentos na obtenção dos quais empregava técnicas sofisticadas de solda de vidro-porcelana e solda metal-vidro, de alto vácuo e de metalização, de polimento óptico, entre outras.
Ainda em 1971 o Caderno Especial do Jornal Diário do Povo dedicava página inteira à arte do vidreiro Cícero em matéria intitulada “No Brasil o Vidreiro é o Autodidata que Entende a Linguagem da Ciência”6, elaborada pela jornalista Maria Helena Tachinardi.
Cícero alimentava o sonho de criar uma Escola de Vidreiros para atrair gente nova para a profissão e uma associação que reunisse os colegas de ofício. Este seu desejo e um pouco de sua história foram descritos no Caderno de Domingo da Folha de São Paulo (15/04/1973), na matéria “A difícil e bela arte dos técnicos de vidro”.
Não se passaram muitos anos para que os vidros de Cícero, a medicina e o espírito de pioneirismo dessem um grande passo no mundo científico. Em 1977, a matéria “Cirurgia com Laser Praticada em Campinas”, publicada neste Correio Popular, descreve os avanços desta técnica na medicina e dá destaque especial a Cícero descrevendo como “notável” seu trabalho na criação das partes de vidro e quartzo e nas experiências que deram a Campinas o pioneirismo em um campo novo da cirurgia de ouvido, praticada pelos Drs. Luiz Henrique Escudeiro e Aluísio de Castro do Hospital Sagrado Coração de Jesus.7
Em 1985 recebeu efusivo reconhecimento do Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti, então Reitor da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, por sua peça artística, muito sofisticada, constituída por uma redoma envolvendo uma árvore e plantas e flores inteiramente de vidro, denominada “Vidralia Campus Zeferinensis”, em homenagem ao Prof. Dr. Zeferino Vaz. A carta é reproduzida aqui em sua íntegra:
“Caro José Cícero
Sua esplêndida “Vidralia Campus Zeferinensis” repousa gravemente sobre minha mesa de trabalho, como testemunho da amizade do artista e da arte superior que você produz.
Estou certo de que o saudoso Prof. Zeferino Vaz não só se orgulharia de sua obra, como certamente se comoveria, homem sensível que era, com a homenagem que através dela você lhe rende.
Tão sensível quanto a sua excelente “Vidralia Campus Zeferinensis”, caro José Cícero, será o sentimento de minha gratidão.
Atenciosamente,
José Aristodemo Pinotti, Reitor
25 de novembro de 1985”
Sr. Cícero era capaz de transformar tubos de vidro e quartzo comprados por quilo no exterior em peças refinadas e de grande precisão para diversos usos científicos graças a técnicas que ele mesmo desenvolvia, após a aplicação de incasáveis tentativas que eram repetidas à exaustão, sempre com base nos conhecimentos que levantava na literatura, buscando atingir a perfeição. O trabalho de vidraria é extenuante e perigoso, porque requer maçaricos a hidrogênio cuja chama pode atingir 2.000oC. O risco de explosão e queimaduras está sempre presente, por isso Cícero costumava dizer a seus pupilos:
“Se a chama, ao ser desligada, não se apagar em 60 segundos, chame os bombeiros e abandone o prédio”.
Cícero nunca admitiu a palavra “desisto”. Não só o conhecimento técnico trazido de laboratórios da França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos mas principalmente seu talento, perseverança e paixão pela tecnologia de vidro, fizeram dele um especialista reconhecido no país e no exterior. Graças a sua excepcional contribuição, laboratórios de institutos de pesquisa e universidades puderam desenvolver materiais, processos e dispositivos na fronteira do conhecimento. Seu trabalho estendeu-se também a empresas que dependiam de soluções avançadas que muitas vezes surpreendiam congêneres do exterior.
Sua coragem e determinação levou-o a criar a empresa Ultra Vidro Com. e Ind. de Vidros e Acessórios para Laboratório Ltda. que, mais do que uma unidade de manufatura, é um laboratório de pesquisa em que peças únicas são desenvolvidas e testadas para depois serem repetidas em pequenas séries, visando atender a demanda de empresas e laboratórios de todo o país e do exterior.
Na Ultra Vidro Cícero continua trabalhando com a mesma energia de quando jovem, desenvolvendo e confeccionando partes, peças e sistemas que não só atendem a demanda de pesquisadores e técnicos, como vão além das especificações iniciais, graças a sua contribuição com ideias e soluções que enriquecem os projetos aos quais se aplicam. Uma visita aos laboratórios de Cícero permite encontrar cópias da grande maioria das peças, dispositivos e sistemas desenvolvidos por ele no estado da arte para aplicações em Física, Química e Engenharias, uma vez que sempre fazia duas peças idênticas quando atingia a perfeição dos processos físico-químicos. Uma das peças era guardada consigo para registro histórico pois José Cícero sabia o que significavam para a história da ciência brasileira. São verdadeiras joias que demonstram profundo conhecimento dos processos de solda, sopro, conformação de vidro e quartzo e, mais que isto, que demonstram o conhecimento científico dos princípios que regem os fenômenos e processos a que se aplicam. Isto quer dizer que Cícero vai a fundo nos problemas que lhe são propostos, enriquecendo as soluções com seu conhecimento e arte.
Em coluna anterior, citei minha experiência em uma instituição de pesquisa americana na qual o respeito por carreiras científicas não convencionais é parte do dia-a-dia.
Entretanto não é preciso ir tão longe: a história do Sr. Cícero, como de tantos outros brasileiros que atingiram um nível técnico-científico bem acima da média, mesmo sem ostentarem títulos acadêmicos, foi a inspiração para minha proposição de programa oficial de reconhecimento de saberes e competências. Vê-se que lideranças científicas do passado foram capazes de reconhecer este tipo incomum de profissional, sem cair em armadilhas da já mencionada “titulocracia” (ver colunas anteriores). Essas lideranças foram capazes de criar as oportunidades à altura do talento dos profissionais.
O Estado Brasileiro precisa confiar na capacidade de identificação de talentos de suas lideranças científicas, como ocorreu no caso do Sr. Cícero que, independentemente de sua formação, teve oportunidades abertas por pesssoas comprometidas com a ciência e a tecnologia.
Hoje, profissionais altamente habilitados são preteridos em processos seletivos focalizados em títulos e outros aspectos cartoriais da carreira, os quais impedem que os verdadeiros talentos sejam mobilizados para a complementação das equipes de pesquisadores. Muitas vezes uma instituição pública vê-se impedida de contratar um profissional reconhecido, simplesmente porque este não ostenta uma titulação formal. Em tempos de internet, com a facilitação do acesso a informação, espera-se que cada vez mais seja possível estimular talentos em áreas essenciais para o desenvolvimento científico e tecnológico, os quais possam ser aproveitados através de mecanismos dede contratação complementares aos processos seletivos atuais.
Referências
1. Carta enviada pelo Prof. Dr. Sérgio Mascarenhas ao Diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Prof. Dr. José Moura Gonçalves, em 18/5/1968.
2. Folha de Informação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP, de 28/06/1968.
3. Carta do Prof. Dr. Ivan F. de Carvalho, do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, enviada à FAPESP em 5/11/1968.
4. Carta enviada pelo Prof. Dr. Milton Ferreira de Souza, do Departamento de Física da Escola de Engenharia de São Carlos ao Prof. Dr. Hélio Lourenço de Oliveira, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em 27/08/1968.
5. José Cícero Martins Brandão, “Manual do Aprendiz de Vidreiro”, Secção de Vidraria, Instituto de Física Gleb Wataghin, Unicamp, junho de 1973.
6. “No Brasil o Vidreiro é o Autodidata que Entende a Linguagem da Ciência”, reportagem de Maria Helena Tachinardi, Diário do Povo, 1971.
7. “Cirurgia com Laser praticada em Campinas”, reportagem de Benedito Barbosa Pupo, Correio Popular de 16/03/1977, p. 7.