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Publicado 26/03/2018 - 07h35
Ciência e Pseudociência
Diariamente somos inundados por inúmeras promessas de curas milagrosas, métodos de leitura ultra-rápidos, dietas infalíveis, riqueza sem-esforço. Basta abrir o jornal, ver televisão, escutar o rádio, ou simplesmente abrir a caixa de correio eletrônico. A grande maioria desses milagres cotidianos são vestidos com alguma roupagem científica: linguagem um pouco mais rebuscada, aparente comprovação experimental, depoimentos de “renomados” pesquisadores, utilização em grandes universidades. São casos típicos do que se costuma definir como “pseudociência”. A definição de pseudociência é muito genérica, e pode incluir, além dos poucos exemplos citados, uma grande quantidade de fenômenos paranormais, sobrenaturais, extra-sensoriais, e qualquer conjunto de procedimentos e “teorias” que tentem se disfarçar como ciência, sem realmente sê-la.
A discussão dos limites entre ciência e pseudociência certamente inclui uma questão mais profunda: o que é ciência? Como defini-la? Esse é um assunto complexo e delicado, e impossível de tratar neste breve artigo. Entretanto, é útil discutir porque devemos nos preocupar com as pseudociências. Aparentemente, não podem causar mais impacto do que simples arranhões à já aparentemente consolidada imagem da ciência, que é geralmente vista como um pilar firme onde a sociedade se apoia. Entretanto, vale lembrar que inúmeras vezes a pseudociência é utilizada com má fé, destinada a usurpar o dinheiro da população em geral que ingenuamente acredita em evidências casuais, rumores e anedotas. Esse fato torna-se ainda mais drástico quando essas crenças atingem a área de saúde, onde o prejuízo financeiro pode vir acompanhado de um irreparável dano físico e/ou mental.
A própria definição de pseudociências é uma questão complexa e delicada. Há muitas características comuns que podem ser utilizadas para tentar esboçar uma demarcação. Como já dito, as pseudociências têm esse nome pois tentam mimetizar uma aparência de ciências, incluindo uma linguagem mais complexa, com afirmações veementes de que os resultados são “comprovados cientificamente”, ou abalizados por “estudos aprofundados”. Além disso, as pseudociências normalmente baseiam-se em anedotas e rumores para “confirmar” os fatos. Um exemplo comum é ouvirmos (ou recebermos alguma corrente ou correio eletrônico) alguma história mirabolante sobre doenças provocadas por latinhas sujas ou roubo de órgãos para contrabando. Estes rumores que se espalham com uma facilidade impressionante devido à Internet têm o nome de “lendas urbanas”, e também podem ser considerados como um subgrupo das pseudociências.
Em seu clássico livro “O Mundo Assombrado por Demônios - A Ciência vista como uma Vela na Escuridão", o Físico Carl Sagan descreveu, de modo brilhante, um kit de detecção de mentiras ou bobagens (Balooney Detection Kit), principalmente no que se refere a afirmações aparentemente científicas. Ele enfatiza o uso do pensamento crítico para reconhecer argumentos falhos ou fraudulentos, o que podemos chamar de um modo geral de “pseudociência”. Além do raciocínio lógico e do reconhecimento de alguns elementos característicos das pseudociências, é particularmente importante conhecer, ao menos superficialmente, como a ciência funciona.
De acordo com Sagan, há algumas ferramentas básicas no kit que devem ser utilizadas para analisar argumentos e afirmações que aparentemente são embasadas em experimentos científicos:
Sempre que possível deve haver uma confirmação independente dos “fatos”;
Deve-se estimular um debate substantivo sobre as evidências, do qual participarão notórios partidários de todos os pontos de vista;
Os argumentos autoridade têm pouca importância - As 'autoridades' cometeram erros no passado. Voltarão a cometê-los no futuro. Uma forma melhor de expressar essa ideia é talvez afirmar que em ciência não existem autoridades; quando muito há especialistas;
Deve-se considerar mais de uma hipótese. Se alguma coisa deve ser explicada, é preciso pensar em todas as maneiras diferentes pelas quais poderia ser explicada. Então se deve pensar em formas de derrubar sistematicamente cada uma das alternativas. A hipótese que sobreviver a esta “seleção natural” tem maiores chances de ser a correta;
Não se apegar demais à sua própria hipótese. Devem-se buscar razões para rejeitá-la. Se você não fizer isto, outros o farão;
Quantificar sempre que possível. Aquilo que é vago e qualitativo é suscetível a muitas explicações;
Se há uma cadeia de argumentos, todos os elos da cadeia devem ser válidos (inclusive a premissa) - não apenas a maioria deles;
Deve-se sempre questionar se a hipótese pode ser, pelo menos em princípio, falseada. As proposições que não podem ser testadas ou falseadas não valem grande coisa. Devemos poder verificar as afirmativas propostas.
Na realidade há muitas outras características comuns que podem ser utilizadas para tentar esboçar uma demarcação das pseudociências, o que nem sempre é trivial. Além disso, as pseudociências normalmente baseiam-se em anedotas e rumores para “confirmar” os fatos, e incluem personagens que afirmam que não são compreendidos e são hostilizados por nossa sociedade, assim como foram Galileu e Copérnico em suas épocas.
Mas, por que devemos nos preocupar com as pseudociências? Para os cientistas, a resposta mais simplista poderia indicar uma tentativa de evitar “manchar” a imagem da ciência, que tem consolidado a sua reputação em anos e anos de hipóteses, teorias e experimentos bem-sucedidos e capazes de explicar muitos aspectos do universo em que vivemos. Mas, na realidade, a maioria das pessoas vive perfeitamente bem sem saber diferenciar entre ciências e pseudociências. Entretanto, mais cedo ou mais tarde, em alguns momentos da vida esse conhecimento pode ser muito importante. Seja para decidir um tratamento médico, seja para analisar criticamente algum boato, seja para se posicionar frente à alguma decisão importante que certamente influenciará a vida de seus filhos e netos. A sociedade, como um todo, deve assimilar uma “cultura científica”, com a participação de instituições, grupos de interesse e processos coletivos estruturados em torno de sistemas de comunicação e difusão social da ciência, participação dos cidadãos e mecanismos de avaliação social da ciência. Mas, ao falar da cultura científica não estamos nos referindo, necessariamente, à “ciência” ortodoxa, entendida como acúmulo de conhecimentos coerentes, fixos e certos que se constroem sob a atenta vigilância de uma metodologia confiável sobre uma realidade natural subjacente (legado da tradição positivista que apela à objetividade da ciência e seu “espírito” altruísta). A cultura científica é entendida, neste sentido mais amplo, como forma de instrução, de acumulação do saber, seja este socialmente válido ou não.
E a necessidade de uma cultura científica aparece claramente na distinção entre ciências e pseudociências. Além dos aspectos já mencionados, muitas vezes somos compelidos a aceitar algo sem fundamento científico, mesmo sem acreditarmos naquilo. Infelizmente, vemos isso acontecer com mais frequência do que gostaríamos...