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Publicado 26/04/2018 - 15h09
Solidariedade e Patriotismo
Um tanto frenético, como me advertiu um amigo, este texto que ora apresento para o público, trata de muitos assuntos ao mesmo tempo.
No fundo, o ponto principal do texto é fazer um registro, na forma de pinceladas, sobre as transformações culturais e sociais pelas quais passa o nosso país, ao mesmo tempo em que evidencia a resistência a estas transformações.
E em tempos de convicções, me sinto à vontade de expressar a minha: identifico uma perda de identidade nacional, a qual se dá para o bem ou para o mal.
Digo "para o bem ou para o mal" porque talvez não seja só uma perda. Talvez seja também um ganho. Coisas que se transformam têm a chance de incluir novas características positivas. Seria muito arrogante da minha parte, um homem de meia idade, assumir que as novas características que vão sendo adicionadas ao caldo cultural e social do Brasil são, por mais desafiadoras, piores do que as que foram substituídas.
A intensificação do fluxo de informações oriundas do mundo exterior, proporcionada pela internet, está rompendo com um certo isolacionismo lusófono brasileiro. Não existe mais a supremacia de um único canal de televisão e o número de jovens que assistem às novelas está caindo. É cada vez mais comum encontrar pessoas que não assistem ao Jornal Nacional e ao Fantástico, e que se informam pelo Twitter, Facebook ou por canais como este.
Com a profusão da TV a cabo os jovens estão acompanhando as comédias de situação enlatadas, as séries estrangeiras organizadas por temporadas, bem como a uma variedade de conteúdos que estão sendo disponibilizados no Youtube, por exemplo. A cultura e a tradição estão sendo moídas e pulverizadas para gerar uma nova nuvem disforme que ainda precisa ser decifrada.
Até esta afirmação precisa ser relativizada, porque em outro sentido, há uma contraditória perda de diversidade cultural. Atualmente parece mais fácil encontrar o Mickey Mouse numa floresta brasileira do que o próprio Saci.
Não acho que é trivial compreender o que está acontecendo e as gerações que hoje atingem a meia idade ainda serão surpreendidas por uma miríade de transformações por vir. Muito trabalho para os futuros historiadores...
Sequer compreendemos direito o papel das redes sociais nas esferas menos favorecidas da população, mas são inegáveis as conquistas do país na última década em termos de inclusão social também por conta dessas redes. Há mais pessoas lendo, buscando aprender outras línguas, escrevendo, se informando, usando ferramentas de governo eletrônico e contestando informações dos meios de comunicação.
Por outro lado, estes mesmos meios tecnológicos facilitam as teorias de conspiração, boatos, obscurantismos e fanatismos. Para muitos, a terra voltou a ser plana, a despeito de todas as evidências em contrário. Portanto, é difícil saber como essas tecnologias vão transformar alguns traços nacionais que ainda se reproduzem no cotidiano. Por ora só sabemos que eles vão se transformar.
E se há tantas transformações, a segregação social brasileira continua resistente a elas, afinal, fomos o último país do ocidente a decretar o fim da escravidão. Aliás, a nossa classe média é uma das últimas do ocidente industrializado a manter empregados domésticos de forma ostensiva. Até o título de país industrializado me parece que está sendo desafiado, com uma retomada da importância da produção agrícola para a economia nacional. Uma evidência da Divisão Internacional do Trabalho, contra a qual o país lutou por todo o século XX, tal fortalecimento da elite agrária é o cenário que se apresenta para o Brasil no século XXI, com todas as consequências possíveis para a ordem econômica, cultural e social do país.
Resistindo às transformações, as escolas fundamentais e de ensino médio privadas, mesmo numa cidade diversa como Campinas, permanecem como ilhas dos segmentos privilegiados da sociedade, em uma evidente expressão da desigualdade existente entre as classes sociais do país. Esta desigualdade, resultado de uma estatística perversa, acaba se expressando através da cor da pele das pessoas. A educação pública proporcionada por estados e municípios está cada vez mais desfavorecida e o jovem brasileiro carrega todos os estigmas de ser um "millenial", sem ter rompido, no entanto, em muitos casos, a barreira do analfabetismo funcional.
É dentro deste frenesi dialético que a sociedade brasileira precisará encontrar seus caminhos, já em desvantagem em relação às demais, porque o país sequer conseguiu superar algumas das distorções do tempo da colônia, como já mencionado.
Em meio às contradições existentes entre mudanças e conservação, por curioso que seja, passamos por uma espécie de revisitação a um certo "patriotismo". Pessoas vestidas de verde e amarelo, cantando trechos do hino, vêm buscar no passado valores morais e simbólicos que no seu próprio tempo não se mostraram transformadores da realidade nacional. Portanto, se no passado não trouxeram arejamento, é razoável esperar que essa revisitação patriótica, desprovida de uma revisão, tenha poucas chances de redundar em avanços disruptivos no futuro.
É um patriotismo estético que mais se parece com um fanatismo futebolístico no campo cívico do que, propriamente, com a manifestação de solidariedade entre compatriotas.
Lembro-me de um professor de história que dizia que a bandeira brasileira tem um erro positivista que, se não for corrigido, pode, na condição de símbolo da pátria, estimular a continuidade das mazelas brasileiras. Nossa bandeira diz "ordem e progresso", mas precisamos refletir sobre essa ideia bizarra de que é a ordem que leva ao progresso, como se não fosse a liberdade uma das principais fontes de todo o progresso.
A liberdade, porém, não deve ser vista como negação da ordem. A "ordem" positivista de Augusto Comte presente na bandeira invoca a "manutenção de tudo que é bom, belo e positivo" (uma das bases do positivismo), embora tenha sido incorporada no imaginário nacional, de forma errônea, como a "manutenção do status quo", que nem sempre tem essas virtudes.
Outro traço preocupante, que prejudica o progresso nacional, é a falta de identidade das parcelas mais abastadas da sociedade com a diversidade étnica do país. Também falta identidade com os desafios de nossa sociedade. Na crise, alguns que ostentam passaportes da comunidade europeia acabam não dando conta do compromisso com esta realidade nacional.
Acontece que a grande riqueza do Brasil, acima de tudo, é que ele se constitui num caldeirão de genes. A despeito da convicção de que há vantagens na miscigenação, o "lê com lê e crê com crê" continua sendo uma crença no seio de algumas famílias brasileiras, o que prejudica a consolidação da solidariedade como elo patriótico.
A noção de nação brasileira ainda está em construção num momento em que sociedades mais consolidadas cobiçam riquezas nacionais e a nossa patriotada, organizada na forma de um desfile festivo, não tem robustez de reação nem capacidade para saber o que de fato está ocorrendo, muito menos o que precisa ser feito para reagir.
Não basta cantar o hino de frente para uma bandeira. Não basta vestir verde e amarelo. Sem reflexão é melhor nem fazê-lo.
O debate sobre o que é de fato a nação brasileira precisa se intensificar. A busca pela identidade nacional passa por questões fundamentais: os direitos civis, a liberdade, a segurança, a diversidade, a prosperidade, o entendimento mútuo, a justiça e a paz, que, de resto, são as questões que se colocam para a promoção do desenvolvimento humano em geral.
Num mundo que compete por recursos cada vez mais escassos, precisamos nos organizar para defender o nosso direito de cidadãos brasileiros a um futuro digno, seguro e próspero, baseado no legado de nossa pátria. O mundo está cheio de exemplos de sociedades que se desestruturaram frente ao assédio externo, com custos duradouros para seus cidadãos e descendentes.
Devemos construir neste país uma nova solidariedade de compatriotas, sem patriotadas, fanfarronices, destemperos e peripécias de intolerância. Precisamos repelir o etnocentrismo e aceitar a diversidade inerente da nossa sociedade diversa e plural.