Publicado 17/12/2018 - 09h13

Fake News e seu combate através da imprensa livre

Na era da pós-verdade, uma notícia falsa que aparente ser verdadeira pode ter maior aceitação pelo público do que sua refutação feita por um método sistemático.
Métodos sistematizados de avaliação de fatos requerem disciplina mental, reflexão e podem ser, em alguns casos, bem complicados em seu formalismo. O nosso sistema educacional não tem preparado as pessoas para compreender e aplicar métodos sistematizados, tais como o método científico.
Com baixa capacidade crítica, o cidadão fica à mercê do apelo às emoções, às superstições e ao fundamentalismo. São formas de obscurantismo muito primitivas, mais afeitas ao universo medieval, campo fértil para que mentiras sejam construídas e disseminadas, num processo que é acelerado pelas novas tecnologias das redes sociais. Ao ritmo da capacidade de processamento e comunicação digitais, as redes sociais realimentam e amplificam tais mentiras.
A sociedade acabou por ficar refém de seu próprio sucesso tecnológico, dado que, ao mesmo tempo em que corporações concentradoras atingem níveis inimagináveis de inovação tecnológica, a grande maioria da população fica alijada de um processo educacional de qualidade, perdendo a oportunidade de se incluir de forma crítica na nova realidade comunicacional.
Boa parte dos brasileiros estão no whatsapp, mas poucos conseguem se aprofundar na análise das informações que estão sendo disseminadas. Esta situação é campo fértil para que o público seja lentamente manipulado e usurpado de suas próprias conquistas sociais. Também sua integridade e liberdade são ameaçadas porque o cidadão acaba por tomar decisões auto-destrutivas, num processo democrático questionável.
Muito se fala sobre a tal "manipulação da imprensa", mas agora a ameaça à democracia é a disseminação de informações sem verificação e sem identificação, cuja origem são pessoas físicas ou organizações ocultas, que se utilizam de "bots" para aumentar um eventual impacto nocivo.
A informação que tem origem na imprensa institucionalizada, mesmo quando existe intencionalidade editorial, é mais leal com o público. Afinal, a capacidade de identificar a origem da notícia é imprescindível para interpretá-la. Em outras palavras, a fonte de uma dada informação é parte da informação e no caso da imprensa esta origem é sempre explícita.
Ao contrário, notícias disseminadas em grande escala por meio de Whatsapp, por exemplo, não trazem consigo sua origem e, portanto, não permitem ao público fazer este julgamento próprio sobre a intencionalidade subjacente.
Sem ter como avaliar a intencionalidade por trás das notícias, a ânsia intelectual por uma análise aprofundada é substituída pela percepção de recompensa imediatista advinda dos "likes" recebidos num "post". O vício nesta recompensa soterra a paixão pela busca da verdade. As pessoas querem atenção e, no fundo, a coisa é química: "likes" geram estímulos hormonais típicos dos processos de dependência e não importa a credibilidade da informação que está sendo repassada. Aliás, se a informação inverídica for percebida, mas sua refutação for impopular, o medo de perder seguidores ou "likes" paralisa o usuário da rede social, que muitas vezes opta por não criar mais controvérsias para não sofrer assédio coletivo.
No frenesi dos "likes", as pessoas estão ficando incapazes de ler acima de 5 linhas de texto nas redes sociais. No "twitter" as mensagens já foram de 140 caracteres e agora não passam de 280 caracteres. Se por um lado esse limite estimula o poder de síntese do usuário, por outro, prejudica a análise do assunto porque, afinal, ninguém gosta de ler "textões". Leva muito tempo e exige um malabarismo mental de conceitos concorrentes no cérebro do leitor. Textos curtos não requerem muita energia para serem compreendidos. Mas nem todos os assuntos podem ser tratados em textos curtos, razão pela qual a possibilidade de reflexão sucumbe à uma espécie de preguiça mental, ou mesmo, falta de hábito ou tempo para refletir.
Já abordei nesta coluna o texto de Nicholas Carr ("The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains"), que traz a discussão sobre como os indivíduos da atualidade estão perdendo a capacidade de se aprofundar sobre temas mais complexos, que requerem maior dedicação da atenção. Carr refere-se a como o uso intensivo de tecnologia pode estar formatando nossas estruturas neurológicas, prejudicando a capacidade de aprofundamento nas reflexões.
Complementando essas ideias, o que parece estar ocorrendo é que, em benefício da disseminação de reações emocionais a uma verdade fantasiosa, a sociedade vai perdendo a noção do que é real, dando espaço para a incapacidade de reagir às manipulações.
Parece que está ficando cada vez mais difícil convencer o público de que uma informação grosseiramente falsa é, efetivamente, uma mentira. Um exemplo clássico disso é o caso da defesa do modelo da terra plana, que vem tomando corpo nas mídias sociais.
Sim! Tem pessoas que estão acreditando piamente e reproduzindo os argumentos conspiratórios dos terraplanistas. Uma busca no Youtube, por exemplo, mostra a profusão de vídeos defendendo que a terra é plana.
Existe um vídeo "terraplanista" no Youtube de potencial cômico, baseado no uso de uma régua de 30 cm. O sujeito, posicionado em pé numa praia do litoral brasileiro, usa uma régua de 30 cm estendida pelo próprio braço para "medir" a curvatura da terra, comparando a borda da régua com a imagem do horizonte. Eu não me vejo como um dos sujeitos mais irônicos ou sarcásticos, mas tive um acesso de riso quando vi o vídeo.
Neste ponto é preciso um parênteses: a constatação de que a terra é "redonda" não pode ser um ato de fé. Só podemos dizer que o modelo planetário é uma teoria científica porque admitimos que ele possa ser refutado por alguém, ou seja, admitimos a possibilidade dele ser criticado. Este é o princípio da falseabilidade ou refutabilidade de Popper que permite diferenciar teorias científicas das afirmações não-científicas. Por exemplo, a crença em um Deus não pode ser contestada em termos científicos, portanto é assunto do campo da fé e não da ciência. Se você tentar convencer um cristão (seja de qual denominação for) sobre a falta de evidências científicas de que a Bíblia é a palavra de Deus, provavelmente ouvirá uma resposta do tipo "a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem (Hebreus 11:1)". Ou seja: fé não tem discussão. Portanto, são afirmações associadas que, por não serem refutáveis, estão fora do escopo do debate científico.
Entretanto, se é saudável que o modelo da terra redonda seja refutado para não virar uma fé, qual é o problema de existirem terraplanistas a criticá-lo?
Afinal, além do princípio da falseabilidade, existe a liberdade de expressão, que é um valor básico da democracia. A falta de liberdade de expressão, aliás, ceifou a vida de muitos pensadores importantes para a evolução da ciência, a exemplo de Giordano Bruno.
Portanto, não há que se falar em censura da ideia de terra plana. Há que se trazer seus defensores para o debate científico, o que por si só sempre será educativo para todos.
O problema é que uma demonstração de que a terra é plana pela simples observação de uma régua colocada entre o olho e o horizonte, embora errada, é muito fácil de entender e aceitar como válida, por pessoas desatentas. Fazer com que as pessoas entendam que não é uma demonstração válida, por outro lado, requer um tempo maior de atenção e uma base conceitual que não pode ser improvisada ali, de momento. Aliás, a escolaridade ajuda a não cair nestas armadilhas de falsas demonstrações. Some-se a isso que o debate sobre a terra plana é carregado de fundamentalismo, esbarrando na irrefutabilidade. E isto ocorre séculos depois do mesmo fundamentalismo quase levar Galileu às chamas. Pior, as ideias dos terraplanistas têm origem em teorias de conspiração mirabolantes, que, por serem de natureza paranoica, passam longe da possibilidade de refutação.
Outro caso, bem mais grave no curto prazo, são as notícias deturpadas sobre riscos de uso de vacinas, por exemplo. É assustador pensar que pessoas desvinculadas da área de saúde estejam vencendo a batalha da comunicação, colocando crianças e suas famílias em risco, ao abdicarem da vacinação de seus próprios filhos.
Portanto, a disponibilidade de meios tecnológicos para interação humana em larga escala (redes sociais), significa cada vez mais o radical empoderamento do indivíduo na sua capacidade de expressão, independentemente de uma verificação por meio de método sistemático.
Escrever, publicar, imprimir e distribuir um jornal em papel é muito caro e todo este processo só é feito depois de uma verificação minuciosa das informações, que em si também tem um custo. Se um jornal divulga informações falsas, poderá ter que arcar com as consequências jurídicas disso. Por outro lado, uma mensagem pelo Whatsapp é virtualmente gratuita e pode atingir milhares de pessoas num apertar de botão, não havendo quem tenha interesse em pagar pela sua verificação. Muitas vezes, o divulgador da informação falsa sequer pode ser identificado, inexistindo, também, responsabilização, apesar das consequências não serem desprezíveis: reputações são destruídas, pessoas morrem, o investimento no conhecimento científico é disperdiçado, entre tantas outras. É uma terra sem lei.
Nos primórdios românticos da internet acreditava-se que a democracia se beneficiaria da possibilidade de todo cidadão se transformar em uma fonte de broadcasting. Esta forma de ver partia do pressuposto de que tudo seria debatido, produzindo conhecimento e decisões em prol do bem comum. Esqueceram de levar em conta que esta ideia só funcionaria numa sociedade com altos índices educacionais.
Aceitando que "a educação é a inserção do indivíduo em sua própria cultura através da interação com outros indivíduos", é imediato concluir que as redes sociais podem se transformar em poderosos instrumentos de aprendizado coletivo, equilibrando a situação. No longo prazo, é preciso acreditar que este aprendizado tornará o público mais crítico, consolidando o cenário comunicacional em torno da disseminação de notícias confiáveis.
Entretanto, de forma concorrente, é justamente esta capacidade de difusão de informações que tem feito com que ideias sem comprovação ou sem base científica se propaguem de forma alarmante, tornando a interação entre indivíduos num risco para o aprendizado.
Embora as transformações na forma de interação dos indivíduos sejam positivas em muitos aspectos, o fato é que nas mãos de pessoas hábeis e mal intencionadas, o uso de instrumentos de disseminação em massa se transforma em arma implacável de dominação social.
Este não é um fenômeno observado só no Brasil. Está ocorrendo no mundo todo e requer muita reflexão para permitir uma reação.
Proibir a livre disseminação de informações atenta contra a liberdade de expressão, representando também um risco para a democracia. Por outro lado, permitir um laissez-faire comunicacional sem estimular a verificação de fatos é um risco de outra ordem, com impacto em todos os campos do desenvolvimento humano: político, cultural, ambiental, econômico e social.
O fenômeno social de empoderamento do indivíduo em sua capacidade de se comunicar e um simultâneo crescimento do obscurantismo revelam duas coisas:
Nosso sistema educacional não está conseguindo formar cidadãos críticos e capazes de interpretar os fatos de sua própria realidade;
A sociedade nunca poderá prescindir de meios institucionalizados de verificação das informações. A imprensa livre e jornalistas formados, identificáveis e imputáveis por eventuais desvios, são necessários como forma de credibilização da informação.
A questão é como empoderar estruturas formais de produção e verificação de informações, sem a criação de "cartórios" e sem ameaçar a liberdade de expressão.
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